Conheça ave ‘fantasma’ que emite som de queixada batendo as mandíbulas
Na floresta profunda do sul do Amazonas, existe um som que intriga caçadores há gerações: estalos altos e secos, como se um bando de queixadas estivesse pronto para atacar.
O barulho vem do mato fechado, mas, ao se aproximar, ninguém encontra nada. Nem rastros, nem cheiro, nem sombra de bandos de queixadas (Tayassu pecari) ou catetos (Dicotyles tajacu). Apenas o som, persistente, como um eco solto entre as árvores.
Para muitos moradores da região do Rio Liberdade, o responsável por esse ruído enigmático é a Alma-de-porco – uma criatura que vive escondida no mato e só se manifesta por sons. Parte bicho, parte lenda.
Neomorphus geoffroyi australis é uma variedade de jacu-estalo com mais de meio metro de comprimento, ágil e discreta
Luana Alencar/Laboratório de Ornitologia da UFAC - Catraia Soluções Ambientais
Alguns acreditam que se trata do espírito de um porco abatido, vagando sem paz pela floresta. Outros, especialmente os caçadores mais experientes, dizem que esse estalo vem de uma ave rara, quase nunca vista, que corre pelo chão e estala o bico como se fosse um animal de presas afiadas.
Foi ouvindo essa história que o biólogo Luis Morais percebeu que talvez estivesse diante de algo muito maior do que um relato folclórico. Doutorando pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), Luis estuda aves do gênero Neomorphus, conhecidas como jacus-estalo.
Ele estava voltando de uma expedição na Serra do Divisor, no Acre, justamente em busca de uma dessas espécies, o jacu-estalo-de-bico-vermelho, quando o acaso colocou um novo enigma em seu caminho.
No ônibus de volta para casa, conheceu Niba, um ribeirinho do sul do Amazonas que fazia sua primeira viagem à capital. Nascido e criado nas margens do Rio Liberdade, Niba vive em uma região onde a floresta é usada de forma tradicional pelas comunidades locais.
Rapidamente, os dois começaram a conversar sobre a mata, os bichos, os sons. “Criamos uma amizade genuína, como duas crianças fascinadas por passarinhos”, relembra Luis.
Foi durante essas conversas que Niba mencionou a tal Alma-de-porco. O relato chamou a atenção de Luis imediatamente: uma ave grande, difícil de ver, que corria pelo chão e fazia estalos com o bico semelhantes aos sons que os queixadas fazem.
“Quando ouvi essa história, logo imaginei que pudesse se tratar de um jacu-estalo”, conta. Mas não havia registros concretos da ocorrência desse grupo de aves naquela região. O mistério, então, virou objetivo de pesquisa.
A expedição em busca da “Alma-de-porco”
Meses depois, Luis organizou uma nova expedição, agora com apoio das comunidades ribeirinhas do Acre e do Amazonas. Representando o Museu Nacional/UFRJ e ao lado do pesquisador Marco Aurélio Crozariol, do Museu de História Natural do Ceará Prof. Dias da Rocha (MHNCE), ele embarcou numa jornada de 15 dias floresta adentro.
Foram deslocamentos por avião, ônibus, carro, barco e canoa. Em áreas sem estrutura conhecida, contaram com a ajuda da própria população local para improvisar transporte, abrigo e alimentação.
O Neomorphus geoffroyi australis é diferente dos jacus-estalo que ocorrem no leste da Amazônia, tem a plumagem mais escura, menos colorida, íris negra e o peito sem escamas na região central
Luana Alencar/Laboratório de Ornitologia da UFAC - Catraia Soluções Ambientais
Já em solo amazonense, percorreram trilhas usadas por caçadores, em uma região de mata densa e bem preservada, com áreas alagadas e trechos de terra firme.
Logo no segundo dia, enquanto descansavam à beira da trilha, Paulo, filho de Niba, apontou para frente e perguntou: “Que bicho do rabão é aquele?”.
Luis olhou e mal acreditou no que via. Tentou pegar rapidamente o equipamento, mas a ave percebeu a movimentação e disparou floresta adentro, soltando uma sequência de estalos altos e secos, “como uma metralhadora”, descreve.
Correu atrás dela e conseguiu observá-la empoleirada entre os cipós. “Tratava-se de uma forma raríssima e pouco conhecida, o Neomorphus geoffroyi australis”.
Durante os 15 dias de campo, o biólogo Luis Morais fez anotações sobre as características da ave
Luis Morais
Essa foi a primeira vez que Luis viu essa variedade específica do jacu-estalo. Uma ave grande, com mais de meio metro de comprimento, ágil, discreta, e que se esconde à menor perturbação. O som que emite com o bico é alto, intimidador, e lembra muito o ruído que os queixadas fazem ao bater os dentes para se defender.
Apesar disso, trata-se de um animal extremamente raro. O próprio Niba, que viveu toda a vida naquela floresta, disse tê-la visto apenas duas vezes.
“Mesmo após anos estudando outras formas de jacu-estalo, essa foi a primeira vez que vi essa variedade específica”, explica Luis.
Ela é diferente das que ocorrem no leste da Amazônia, tem a plumagem mais escura, menos colorida, íris negra e o peito sem escamas na região central.
O objetivo da pesquisa dele é investigar se essas diferentes formas são, na verdade, espécies distintas. Até então, não havia registros confirmados dessa forma no Brasil – os únicos relatos conhecidos eram no Peru e na Bolívia.
A descoberta mostra como os caminhos da ciência e da tradição podem se cruzar com força. Foi a escuta atenta de Luis à sabedoria de Niba que permitiu essa revelação. O som que antes parecia uma assombração na mata era, na verdade, o canto estalado de uma ave quase invisível.
Uma espécie que, embora real, seguia vivendo como um fantasma: rara, silenciosa, escapando aos olhos humanos por entre os galhos e lendas da floresta.
Outros jacus-estalos registrados pelo biólogo
Jacu-estalo-de-bico-vermelho (Neomorphus pucheranii): foi registrado por Luis Morais na Serra do Divisor (AC), em novembro de 2024, o jacu-estalo-de-bico-vermelho é uma ave rara da Amazônia ocidental, com cerca de 50 cm e coloração marcante. Vive em florestas preservadas e tem hábitos discretos, ainda pouco conhecidos pela ciência. Existem duas subespécies, distribuídas ao norte e ao sul do rio Amazonas.
Jacu-estalo-de-bico-vermelho foi fotografado na Serra do Divisor, no Acre
Luis Morais
Jacu-estalo-escamoso (Neomorphus squamiger): fotografado em dezembro de 2024, em Novo Progresso (PA), o jacu-estalo-escamoso é uma ave rara e discreta das florestas escuras do sul da Amazônia. Mede cerca de 43 cm e apresenta plumagem escamado-preta e branca no peito, cauda vinho com ponta azulada e olhos vermelhos intensos. Por muito tempo considerado restrito ao baixo Tapajós, hoje se sabe que sua distribuição se estende até o leste do rio Xingu e sul da Serra do Cachimbo – embora ainda haja incertezas sobre sua abrangência.
Por muito tempo considerado restrito ao baixo Tapajós, hoje se sabe que a distribuição do jacu-estalo-escamoso se estende até o leste do rio Xingu e sul da Serra do Cachimbo
Luis Morais
Jacu-estalo (Neomorphus geoffroyi dulcis): flagrado em Sooretama (ES), essa é uma das aves mais raras da Mata Atlântica. Por décadas, chegou a ser considerado possivelmente extinto. Vive entre os cipós do sub-bosque das matas de tabuleiro na bacia do rio Doce. A forma azul fotografada no Espírito Santo é hoje considerada parte da mesma espécie que ocorre na Amazônia e na Caatinga, embora seja bastante distinta e tenha sido originalmente descrita como uma espécie à parte.
O jacu-estalo (Neomorphus geoffroyi), uma das aves mais raras da Mata Atlântica, vive entre os cipós do sub-bosque das matas de tabuleiro na bacia do rio Doce
Luis Morais
Jacu-estalo (Neomorphus geoffroyi amazonicus): com íris muito clara, barriga branca e peito fortemente escamado, essa subespécie de Neomorphus geoffroyi ocorre no Maranhão e no leste do Pará. O registro de Luis foi feito na cidade de Parnarama (MA).
O Neomorphus geoffroyi amazonicus ocorre no Maranhão e no leste do Pará
Luis Morais
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Publicada por: RBSYS