Aos 67 anos, Melky Duenas decidiu recomeçar a vida no Brasil, em Sorocaba (SP), onde construiu sua família e, há sete anos, confecciona óculos e relógios de madeira reciclável. Artista salvadorenho transforma madeiras de reciclagem em óculos e relógios
Melky Duenas/Arquivo pessoal
Por trás de todo artista existe uma história, e é com ela que a arte vai ganhando contornos de curiosidades. Desde quadros até pequenas peças esculpidas, a arte pode representar amores vividos, contos ouvidos e, até mesmo, traumas presenciados.
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Melky Duenas, de 67 anos, vivia em El Salvador, país da América Central, mas, em 1977, o início de uma Guerra Civil fez com que ele precisasse deixar tudo para trás e fugisse para o Brasil, em uma cidade do interior de São Paulo: Sorocaba.
Embora seja salvadorenho, Melky também tem uma parte brasileira. Afinal, já são 46 anos morando no país da América do Sul.
No Brasil, ele se dedicou ao trabalho industrial na área mecânica, até que uma demissão inesperada fez com que ele deixasse as grandes máquinas e passasse a trabalhar com peças que precisam de cuidados minuciosos: com 60 anos, trocou os galpões por um ateliê. No local, passou a produzir peças únicas de óculos e relógios com madeira reciclada.
"Depois que fui despedido da empresa, com 60 anos, é difícil encontrar emprego. Por isso, pensei: "O que fazer agora?". Foi aí que surgiu a ideia dos óculos, depois de uma pesquisa que fiz", conta.
Ao g1, Melky comenta que, quando surgiu a ideia de confeccionar óculos, ele queria algo diferente, inovador e sustentável. "[Algo] que seja de madeira, que resista à água, com elementos que não agridam o meio ambiente, e que seja resistente e de excelência", explica.
Mesmo sabendo tudo de mecânica, o salvadorenho ainda não tinha muito conhecimento sobre os processos de tratamento de madeira e quais equipamentos usar para que pudesse trabalhar com os óculos e relógio. Por isso, passou a trabalhar sem receber nenhum salário na cidade.
"Trabalhei três meses de graça para um marceneiro, quando aprendi as técnicas sobre a profissão. Paralelo a isso, eu fiz um mestrado na Universidade de Campinas (Unicamp), onde eles me forneceram também uma cola à base de água e que era resistente. Assim fui me desenvolvendo", relembra.
Madeiras brutas dão espaço para peças únicas de óculos e relógios
Melky Duenas/Arquivo pessoal
????️ Trabalho que leva tempo e requer paciência
Melky explica que a produção dos óculos não foi fácil. Era preciso que o trabalho final fosse de qualidade e excelência. Por isso, ele levou cerca de dois anos para que pudesse ter certeza de que o produto entregue atingisse as expectativas.
O processo de fabricação começa já na busca pelos materiais. Mesmo sendo de reciclagem, é necessário que elas se enquadrem no produto que será produzido. "Trago as madeiras no meu ateliê, limpo elas, aplico uma técnica chamada de laminação, curvo elas e corto", explica.
Oficina onde são confeccionados os óculos e relógios de madeira
Melky Duenas/Arquivo pessoal
Na confecção dos produtos, Melky conta com a ajuda da sua esposa, Fátima Fanti Duenas, de 67 anos. Ele a conheceu no Brasil e os dois são casados há décadas. É ela quem traça os desenhos nas madeiras para que haja uma variedade de modelos dos óculos.
"Ela me ajuda a criar os óculos com seus desenhos, sempre visando à estética com conforto, com diversidades de modelos. Nós entregamos o material com instruções, caixinha", comenta.
Em uma semana, o casal chega a produzir 32 óculos. Mesmo com a prática, Fátima conta que já enfrentou alguns desafios, como quando peças testaram a capacidade de confecção do casal. "Geralmente são as partes das hastes que dão mais trabalho, pelos detalhes que os clientes exigem. Mas conseguimos entregar e explicamos aos clientes."
Peças são trabalhadas para que sejam resistentes
Melky Duenas/Arquivo pessoal
Enquanto o casal produz mais de 30 óculos por semana, os relógios levam um tempo maior. Fátima conta que, há mais de um mês, o marido tem trabalhado na produção de 100 relógios. "Ele monta desde as pulseiras até os ponteiros", conta.
A fuga da guerra
Melky Duenas em El Salvador, em uma de suas visitas à terra natal
Melky Duenas/Arquivo pessoal
Quem observa a arte de Melky não imagina a luta que ele teve para chegar onde chegou. Nascido na província de Ahuachapan, há 40 km do Oceano Pacífico, em El Salvador, quando criança viveu no campo ao lado dos pais e de seus irmãos, onde ajudava na agricultura e na criação de animais.
Os tempos de tranquilidade foram trocados por momentos conturbados. Na década de 1970, El Salvador mergulhou em uma grande Guerra Civil e permanecer no país era um risco iminente de morte. Por isso, enfrentou a dor de deixar a família para garantir a sua sobrevivência.
"Saí do meu país com 18 anos e com dor no coração em deixar a família, mas lá estavam em guerra. Uma guerra pesada. Meu irmão ficou, achando que era natural ficar e lutar pelos direitos, mas, infelizmente, ele foi mais um de tantos que morreram defendendo nosso país das mãos dos ditadores, lembro que a minha mãe me aconselhou para sair do país, eu escolhi o Brasil", relembra.
“Quando cheguei aqui tive dificuldade, mas fui acolhido e comecei a construir minha família. Hoje, quando lembro do que já passei, sinto muito orgulho, principalmente agora que estou com o meu projeto”, conclui.
A Guerra Civil de El Salvador teve início a partir do golpe militar, no dia 15 de outubro de 1979, que depôs o governo eleito de Carlos Humberto Romero, político alinhado com os ideais americanos e apoiado pelos fazendeiros de café, que representavam as famílias ricas do país.
Mais de 75 mil morreram e ao menos oito mil ficaram desaparecidas após a guerra.
Confira os trabalhos de Melky como artesão
*Colaborou sob supervisão de Gabriela Almeida
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Publicada por: RBSYS